- Desafios e propostas
Universidade do Minho. Braga, 29 Junho 2015
Manuela Silva
1. Os desafios do século XXI
Dou por adquirida a ideia de que, neste primeiro quartel do século XXI, que já vai a mais de meio, estamos perante um cenário de múltiplas, complexas e aceleradas mudanças, com impactos muito profundos no modo de organização da economia (produção e repartição da riqueza) e da sociedade (estilo de vida, desenvolvimento e coesão social) e quiçá sobre a organização política dos países e a nível supra nacional.
Acresce que as mudanças em curso também se repercutem no modo como os seres humanos, individualmente e em grupo, vão pensando a sua própria existência e sentido de vida, definindo as suas aspirações e consensualizando os padrões de valores pelos quais aferem as suas atitudes e comportamentos e, em geral, no modo como se relacionam consigo mesmos, com os outros, com o planeta onde habitam, com a transcendência.
Admito também que a educação é uma componente que não determina mas influencia este processo de mudança, tanto na sua génese como no modo com que as pessoas e as instituições se adaptam às transformações em curso. Com efeito, o nível e a qualidade da educação de uma população reflecte-se na sua maior ou menor propensão à inovação e à incorporação do conhecimento na economia e no quotidiano da vida pessoal, familiar e social, na sua capacidade de discernimento sobre as alternativas que se apresentam e de escolhas mais racionais e eficientes.
Por outro lado, a educação será, por definição, um veículo de aprofundamento e de transmissão de valores, que, não sendo imunes ao processo de mutação em curso, fortalecem, porém, a capacidade dialógica com que, a nível pessoal e colectivamente, se pode enfrentar o presente numa perspectiva de futuro.
Neste contexto, ganha particular relevância uma educação que valorize a sustentabilidade ambiental, a equidade na partilha dos bens e a coesão social; uma educação que propicie capacidade de análise (conhecimento), de discernimento (valores de referência), de intervenção (qualificação para o agir).
Convirá também dizer umas palavras sobre a natureza e a amplitude dos desafios do século XXI. Destacarei os seguintes que, por razões óbvias, me limitarei a enunciar:
- A globalização crescente, com particular incidência na economia, designadamente, no modo de produção e de especialização produtiva, na acumulação do capital e no reforço do poder financeiro e sua dominação, na repartição do rendimento e na concentração da riqueza, tanto no plano mundial como no interior de cada país. Uma globalização que pela via do ilimitado poder das grandes multinacionais vai urdindo uma teia jurídica supra nacional que, paulatinamente, se vai impondo ao poder democrático dos estados e cerceando a sua capacidade de governação em questões-chave como a defesa ambiental ou os direitos sociais dos cidadãos.
- O avanço exponencial do conhecimento científico e tecnológico e respectiva apropriação com incidência nos processos produtivos, na organização do trabalho, nas necessidades de qualificação, na mobilidade geográfica e também na organização da vida quotidiana das pessoas e das famílias.
- As múltiplas redes de acesso à informação e seu impacto no modo de pensar e agir das pessoas, em domínios fundamentais da existência humana e proporcionando uma conectividade em tempo real e sem fronteiras.
- As alterações radicais que estão a ocorrer nos padrões demográficos, com redução da natalidade, aumento considerável da esperança de vida e envelhecimento da população nos países desenvolvidos e explosão demográfica nos países emergentes.
- As consequências de alterações climáticas particularmente significativas que já se fazem sentir no presente em algumas regiões do Planeta e constituem séria ameaça de sobrevivência de muitas espécies no futuro.
- As enormes e crescentes desigualdades de riqueza e rendimento no plano mundial, de par com bolsas de pobreza severa em vários continentes.
- A manifesta fragilidade das instituições internacionais para fazer face aos desafios da regulação económica e financeira para enfrentar e pôr termo ao terrorismo e para garantir uma paz justa e sustentável.
2. Pensar a Educação – uma tarefa inadiável
É neste quadro de referência que temos de pensar a educação que desejamos para a população do nosso País e, em particular, para as gerações mais jovens a quem, pela lei da vida, cabe construir o futuro.
Por outro lado, não devemos ignorar que, apesar dos esforços feitos depois de 1974, são ainda muito elevados os níveis de iliteracia e de défice de qualificação de uma percentagem elevada da população adulta, situação que merece uma atenção específica por parte do Estado enquanto garante da igualdade de oportunidades no acesso à educação.
No que vai seguir-se procurarei dar conta das principais conclusões de um projecto de reflexão que tive o gosto de coordenar e que teve por tema Pensar a Educação. Portugal 2015, uma iniciativa cívica que foi participada por mais de uma centena de investigadores e professores e teve o seu ponto alto numa conferência pública realizada no passado dia 21 Maio, em Lisboa.
Com esta iniciativa procuramos dar expressão ao nosso convencimento de que é urgente a construção de um projecto educativo de qualidade para o nosso País, que esteja à altura dos desafios do mundo contemporâneo, que assegure igualdade de oportunidades para todos e que sirva de base à definição e à implementação das políticas públicas bem como à sua avaliação permanente enquanto instrumento de aperfeiçoamento do sistema educativo.
Na génese desta iniciativa, que se enquadrou num projecto mais vasto do grupo Economia e Sociedade de reflexão sobre o desenvolvimento humano sustentável, estão cinco vectores principais:
• A educação é, simultaneamente, uma via de felicidade e de realização humana, tanto no plano individual como a nível comunitário e constitui um factor determinante do desenvolvimento, da prosperidade, da sustentabilidade ambiental e da coesão social;
• Existe, presentemente, um grande desconforto na sociedade portuguesa acerca do desempenho do sistema educativo nacional e das políticas públicas que vêm sendo implementadas, muitas vezes com carácter casuístico e decididas de modo atrabiliário;
• É corrente a ideia de que falta uma estratégia política, clara e democraticamente consensualizada, relativamente à educação da população em geral e, em particular, no que respeita à educação das gerações mais jovens, uma estratégia que ofereça um quadro de referência estável e claramente definido para quantos intervêm no sistema;
• A educação tem de corresponder aos novos desafios com que os povos estão confrontados neste primeiro quartel do século XXI, nomeadamente o avanço no conhecimento científico e a sua difusão, as tecnologias de informação e de comunicação, a globalização das economias, a mobilidade geográfica e as suas consequências para a cidadania e para a interculturalidade;
• Partimos do convencimento de que a educação deve ser assumida como um desígnio colectivo, um património ou “tesouro” comum, e constituir, por conseguinte, uma preocupação, que merece ser atentamente cuidada por toda a sociedade, cabendo ao Estado a responsabilidade de garantir a igualdade de oportunidades de acesso (e sucesso) a uma educação de qualidade, segundo padrões claramente definidos e politicamente consensualizados.
3. Educação: Para quê? Para quem?
Reconhecemos que a educação é, antes de mais, um factor nuclear da construção da felicidade e da realização de cada pessoa, no plano individual e societal, bem como um requisito determinante do desenvolvimento cultural, científico e sócio-económico, um factor da prosperidade colectiva, da sustentabilidade ambiental e da coesão social. Assim sendo, a educação deve merecer lugar de destaque em todas as políticas públicas (e não apenas na política sectorializada da educação), bem como constituir preocupação permanente de toda a sociedade, com destaque para as famílias, as empresas, as organizações da sociedade civil.
A educação dirige-se a toda a população em qualquer etapa de vida, mas, enquanto projecto educativo, reveste particular relevância no que concerne à formação das gerações mais novas e no que diz respeito ao segmento da população adulta com défice de educação básica e insuficiente qualificação profissional.
4. Pressupostos de um projecto educativo
A construção de um projecto educativo assenta, necessariamente, num conjunto de pressupostos relativamente aos objectivos visados, aos valores que os informam, aos actores que os concretizam e à delimitação de responsabilidades entre o sector público e o sector privado.
Estes pressupostos muitas vezes não são devidamente clarificados no debate político sobre a educação e na definição e implementação das políticas educativas. Entendo, porém, que sem a sua devida explicitação, todo o debate é frouxo e suscita grandes equívocos e está na origem de desastrosas errâncias.
Para não cair neste erro, passo a enunciar alguns dos principais fundamentos que subjazem ao conceito de educação que perfilhamos:
• A educação visa, em primeiro lugar, reconhecer e potencializar as capacidades de cada pessoa, criança, jovem ou adulto, contribuindo para o seu desenvolvimento integral e para a sua realização pessoal, dotando-a de ferramentas para, ao longo da vida, progredir no conhecimento e na criatividade, na participação na actividade económica e na vida cultural e cívica da sociedade a que pertence;
• A educação deve ser pensada, tendo em conta, também, o seu contributo para um projecto de desenvolvimento para toda a colectividade que, além do crescimento económico, contemple a coesão social, a sustentabilidade ambiental e a prossecução da paz entre os povos;
• No que concerne aos valores, a educação deve ter por matriz a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição da República Portuguesa, daí decorrendo um conjunto de princípios orientadores, devidamente consensualizados como fundamentais;
• Ao Estado compete proporcionar a todos os cidadãos e cidadãs a igualdade de acesso no que diz respeito a uma educação básica, segundo os melhores padrões de qualidade, e garantir a eficiência do sistema educativo, incluindo o seu aperfeiçoamento contínuo na base da investigação e da avaliação permanentes;
• Ao Estado cabe, ainda, assegurar a investigação e o ensino de nível superior e criar condições de igualdade de oportunidades, neste nível de ensino e de investigação, a quantos o procuram, independentemente dos respectivos recursos económicos;
• A educação é missão de toda a sociedade que deve aprender a valorizar a educação e a cuidá-la como seu património imaterial, competindo ao Estado, o dever de colaborar com a sociedade para que esta se assuma como sociedade educativa.
5. Conceito de educação e projecto educativo
A educação, nos seus vários níveis, comporta, sempre, duas vertentes nucleares indissociáveis: a criação e a transmissão de conhecimento, incluindo a aquisição de ferramentas para a sua apropriação crítica ao longo da vida e para a construção do próprio saber bem como a formação para o desenvolvimento humano integral de cada pessoa e capacitação para o exercício de uma cidadania responsável, incluindo a participação qualificada na actividade económica.
O projecto educativo, além de integrar e explicitar um conceito abrangente de educação, tem de preencher os seguintes requisitos:
• Ter presente o carácter dinâmico das sociedades e integrar uma visão prospectiva das transformações que ocorrem, no País e no Mundo;
• Integrar uma visão crítica do passado e, por essa via, aprofundar o enraizamento das novas gerações nas tradições e nos valores herdados, desde que criticamente assumidos, e promover a identidade e a afiliação das diferentes gerações;
• Formar para o cuidado de si e dos outros, concorrendo para a autonomia do sujeito e para a sua responsabilização por si mesmo, pelos outros e pelo Planeta;
• Assumir explicitamente e transmitir a dimensão ética da vida e os valores universais e constitucionais.
6. Observações complementares
A - Sobre a relevância do corpo docente, sua qualificação e motivação
Não é possível dissociar a qualidade e a eficiência de um sistema educativo do seu corpo de profissionais, com destaque para os professores e educadores, mas sem esquecer outros técnicos, administrativos e pessoal auxiliar. São todos estes profissionais que, no exercício quotidiano das suas actividades, dão corpo a um dado projecto educativo e concorrem, decisivamente, para o seu sucesso e desenvolvimento.
B - Sobre o modelo de gestão
Qualquer proposta de projecto educativo não pode descurar o desenho do modelo de gestão dos estabelecimentos escolares, designadamente o seu grau de autonomia e a sua articulação com os níveis superiores de decisão política.
A legislação em vigor sobre a organização do ensino público obrigatório tem conduzido à constituição de agrupamentos escolares que vieram secundarizar, ou mesmo anular, a figura tradicional da escola, enquanto estabelecimento de ensino e comunidade educativa, desejavelmente dotada de autonomia relativamente à gestão corrente e à construção de um projecto educativo próprio, ainda que sempre enquadrado no plano educativo nacional.
O actual modelo de gestão não favorece as relações humanas, a responsabilização, a confiança, a criatividade e o sentido colaborativo entre todos os intervenientes no processo educativo, condições indispensáveis para a construção de um projecto educativo participado e devidamente assumido por todas as pessoas que o devem concretizar. Afigura-se urgente uma corajosa avaliação e revisão da constituição dos actuais agrupamentos, por forma a garantir uma gestão de proximidade e de cariz humano dos estabelecimentos escolares e a assegurar a democracia interna na respectiva gestão.
C – Sobre a municipalização da educação obrigatória
Nesta reflexão não posso deixar de expressar a minha preocupação com a recente deriva de municipalização do ensino público obrigatório já concretizada por legislação recente e em vias de implementação em alguns municípios e alertar para os riscos que tal opção política comporta.
Receio que se trate de um perigoso retrocesso na prossecução de um objectivo de educação básica de qualidade com igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. Atente-se, em particular, na desigualdade de recursos materiais e humanos disponíveis nos diferentes municípios e no relativamente baixo entendimento que, em geral, os seus responsáveis conferem a uma educação de qualidade, ao conhecimento e à cultura.
Acresce que a intenção e a legitimidade de tais medidas são tanto mais ambíguas e discutíveis quanto é certo que não foram acompanhadas por legislação adequada no âmbito da gestão das finanças públicas ou da autonomia das escolas nem no quadro de órgãos intermédios próprios, as Regiões, constitucionalmente previstas, mas ainda não implementadas.
7. Por uma sociedade educativa
Aproximam-se eventos eleitorais relevantes, razão que reforça a necessidade de intensificar a reflexão sobre a educação que desejamos e a oportunidade de colocar esta questão no debate público e nas agendas políticas dos partidos e das suas propostas de governo.
É urgente que a educação entre na agenda da Assembleia da República e nas suas prioridades legislativas, na avaliação do desempenho do Governo e das Autarquias, nas Universidades e sua missão de ensino e investigação, nos media e sua influência na opinião pública e nas atitudes e comportamentos dos espectadores, designadamente das gerações mais jovens, nas preocupações da intelectualidade e dos cidadãos em geral.
Concluo afirmando que a educação é uma questão nuclear que a todos diz respeito, um desígnio que marca o nosso presente e o nosso futuro e por isso cabe a toda a sociedade o dever de se assumir como sociedade educativa.
29 Junho 2015
Manuela Silva.
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