Uma educação para o século XXI - temas a debater?

Congresso Profmat
Porto 2016

1. Introdução

Considero um privilégio ter esta oportunidade de me dirigir a uma assembleia tão numerosa de distintos professoras e professores de matemática, reunidos no seu Congresso anual.
É, também, para mim um grande motivo de satisfação poder reflectir sobre o tema escolhido, já que nos últimos 2 - 3 anos tenho dedicado grande parte da minha atenção ao projecto Pensar a educação.
Muitas das pessoas presentes saberão que me refiro a um projecto nascido no âmbito do Grupo Economia e Sociedade de que faço parte. Este projecto colectivo envolveu, directamente, mais de meia centena de pessoas, deu lugar a 7 seminários sobre diferentes áreas temáticas e a uma conferência realizada em Lisboa, em Maio 2015. Os diferentes produtos finais de todo este processo reflexivo estão publicados em dois livros editados pela Educa, mas são também acessíveis através do blogue Educação Século XXI entretanto criado.
Comecei por considerar esta oportunidade como um privilégio, contudo tenho de imediatamente acrescentar que a vejo também como uma grande responsabilidade, pois me atrevi a propor que pensemos, em conjunto, não sobre a educação em abstracto, mas sobre a educação para o século XXI, isto é, a educação que desejamos para o tempo presente e para as próximas décadas. O título não o explicita, mas faço-o agora: tenho, sobretudo, presente a situação no nosso País.
Como referi no resumo que lhes foi distribuído, proponho-lhes que façamos, em conjunto, um percurso, em torno de três interrogações básicas:
Que educação temos no nosso País?
Que educação desejamos?
Que podemos melhorar?
Antes, porém, convirá fazer uma análise, ainda que sumária, do contexto em que nos situamos, na medida em que a problemática em torno da educação nunca pode desligar-se do contexto socio-económico-político a que a mesma respeita.
Acresce que vivemos tempos de amplas e profundas mudanças de contexto as quais teremos de ter presente para bem situar esta nossa reflexão.
Começarei, pois, por apresentar os contornos, a meu ver mais relevantes, de uma visão prospectiva.

2. Os desafios do século XXI
Dou por adquirida a ideia de que, neste primeiro quartel do século XXI, que já vai a mais de meio, estamos perante um cenário de múltiplas, complexas e aceleradas mudanças, com impactos muito profundos no modo de organização da economia (produção e repartição da riqueza), da sociedade (consumo, estilos de vida, desenvolvimento e coesão social) e, quiçá, sobre a organização política dos países e a nível supra nacional e seu posicionamento geo-político.
Acresce que as mudanças em curso também se repercutem no modo como os seres humanos, individualmente e em grupo, vão pensando a sua própria existência e o seu sentido de vida, definindo as suas aspirações e consensualizando os padrões de valores pelos quais aferem as suas atitudes e comportamentos e, em geral, no modo como se relacionam consigo mesmos, com os outros, com o planeta onde habitam, com a transcendência.
Admito também que a educação é uma componente que, embora não o determinando, influencia este processo de mudança, tanto na sua génese como no modo com que as pessoas e as instituições se adaptam às transformações em curso.
Com efeito, o nível e a qualidade da educação de uma população reflecte-se na sua maior ou menor propensão à inovação e à incorporação do conhecimento na economia e no quotidiano da vida pessoal, familiar e social, na sua capacidade de discernimento sobre as alternativas que se apresentam e as escolhas que são reconhecidas como as mais racionais e eficientes.
Por outro lado, a educação será por definição um veículo de aprofundamento e de transmissão de valores, os quais, não sendo imunes ao processo de mutação em curso, fortalecem a capacidade dialógica com que, a nível pessoal e colectivo, se pode enfrentar o presente numa perspectiva de futuro.
Neste contexto, ganha particular relevância uma educação que aprofunde e consensualize valores, nomeadamente no que se refere à sustentabilidade ambiental, à equidade na partilha dos bens e à coesão social; uma educação que propicie capacidade de análise e compreensão da realidade (conhecimento), de discernimento (valores de referência), de intervenção (qualificação e responsabilização pelo agir individual e cooperativo).
Convirá também dizer umas palavras sobre a natureza e a amplitude de alguns dos desafios do século XXI.
Destacarei os seguintes que, por razões óbvias, me limitarei a enunciar:
- O avanço exponencial do conhecimento científico, da tecnologia e da digitalização e a sua respectiva apropriação desigual, com incidência nos produtos e nos processos produtivos, na organização do trabalho, nas necessidades de qualificação da população activa, na mobilidade geográfica e também na organização da vida quotidiana das pessoas e das famílias, designadamente no que se refere à utilização do tempo. Está em marcha uma quarta revolução industrial para a qual há que preparar as gerações mais jovens, mas sem esquecer a população adulta.

- As múltiplas redes de acesso à informação e o seu impacto no modo de pensar e de agir das pessoas, em domínios fundamentais da existência humana. Em particular, cabe notar as imensas possibilidades de uma conectividade alargada, em tempo real e sem fronteiras. As crianças e jovens que hoje chegam às escolas já interiorizaram este tipo de relacionamento digital, como meio de aquisição de informação e de conhecimento, bem como um espaço de expressão de afectos e sentimentos e de normatividade.
- A globalização crescente, com particular incidência na economia, designadamente, no modo de produção e especialização produtiva, na acumulação do capital e no reforço do poder financeiro e sua dominação, na repartição do rendimento e na concentração da riqueza, tanto no plano mundial como no interior de cada país. Embora a mundialização seja fenómeno com remotas raízes históricas, a globalização, que temos vindo a conhecer nas últimas duas décadas, apresenta contornos novos. Pela via do ilimitado poder das grandes multinacionais, tem-se vindo a urdir uma teia jurídica supra nacional que, paulatinamente, se vai impondo ao poder democrático dos estados, cerceando a capacidade de governação destes em questões-chave como a defesa ambiental, a regulação financeira, a liberalização do comércio mundial ou, inclusive, os direitos sociais dos cidadãos.
- As alterações radicais que estão a ocorrer nos padrões demográficos, com redução drástica da natalidade no continente europeu, aumento considerável da esperança de vida e consequente envelhecimento da população sobretudo nos países desenvolvidos e explosão demográfica nos países emergentes.
- Os gigantescos fluxos migratórios, pessoas e famílias, que procuram na Europa um lugar de refúgio político ou de promoção económica o que, entre outros desafios, traz consigo o da interculturalidade e o da criação de condições para uma convivência pacífica de culturas e religiões distintas, bem como a necessidade imperiosa do aprofundamento da nossa própria identidade e da valorização das nossas aquisições civilizacionais.
- As consequências de alterações climáticas particularmente significativas que já se fazem sentir no presente em algumas regiões do Planeta e constituem séria ameaça de sobrevivência para muitas espécies no futuro.
- As grandes e crescentes desigualdades, incluindo bolsas de pobreza severa em vários continentes, em contraste com a manifesta fragilidade dos governos e das instituições internacionais para as debelar e para fazer face aos desafios da regulação económica e financeira, que as geram.
- A luta por uma nova geopolítica em que se afirmam novos actores na cena mundial (a China e a Índia, por exemplo), mas também múltiplos focos de tensão e novas ameaças à paz, com destaque para as guerras na Síria ou no Iraque e os múltiplos focos de terrorismo, em vários continentes, o que exige de todos os cidadãos estar informado, saber discernir, um compromisso sério com a prossecução de caminhos para a paz.

3. Que educação para o século XXI?
No âmbito do projecto Pensar a Educação, ficou claro que é relevante aprofundar e conscientizar o conceito de educação, mormente quando se trata de legislar sobre o direito à educação e a sua concretização em políticas públicas. É igualmente apropriado explicitar esse conceito quando falamos da educação que desejamos para o futuro.
No entender do grupo coordenador do projecto Pensar a Educação, a educação é, simultaneamente, uma via de felicidade e de realização humana, tanto no plano individual como a nível comunitário, e um factor determinante do desenvolvimento, da prosperidade, da sustentabilidade ambiental e da coesão social.
Lembrando Jacques Delors e as suas palavras no prefácio ao livro Educação: um tesouro a descobrir, Relatório para a Unesco, elaborado por uma Comissão Internacional incumbida de reflectir sobre a Educação para o século XXI, podemos afirmar: Face aos múltiplos desafios do futuro, a educação surge como um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social.
Estávamos, então, nas vésperas do começo do novo milénio.
Decorridas quase duas décadas, cresceram, em complexidade e risco, os desafios com que, hoje, estamos confrontados, mas, no nosso País e não só, não se tem valorizado suficientemente, como seria desejável e imprescindível, a educação enquanto veículo dos ideais da liberdade, do desenvolvimento, da justiça social, da solidariedade, da democracia e da paz, nem se tem tido a criatividade bastante para adequar os sistemas de educação e os seus projectos educativos aos novos desafios, salvaguardando, sempre, princípios básicos de igualdade de oportunidades no acesso ao conhecimento e à qualificação, a transmissão de valores, o desenvolvimento do sentido da responsabilidade cívica, da cidadania e da solidariedade.
Por outro lado, a população juvenil, que hoje chega às nossas escolas, vem com traços de personalidade, gostos e aspirações muito diferenciados em função dos seus meios sociais de origem, das suas matrizes culturais e das ferramentas de aquisição de conhecimento de que dispõem.
Acresce que uma parte das crianças e jovens que frequentam as nossas escolas revelam atitudes e comportamentos que, por razões várias, não as dispõem ao gosto pelo conhecimento e ao desejo de aprender, ao devido respeito pelos seus educadores e professores, à disciplina e ao esforço pessoal, ao sentido de responsabilidade por si mesmos e pelo bem comum.
O não reconhecimento desta situação e a falta de medidas para a enfrentar prejudica o alcance efectivo de eventuais reformas que se pretenda introduzir no sistema e nas políticas educativas.
Estas são, a meu ver, necessárias e urgentes e requerem, para além de uma visão clarividente e de vontade política, uma ampla mobilização da sociedade como um todo e o empenhamento dos principais actores, designadamente educadores e professores.
Desde a promulgação da Lei de bases em 1986, já lá vão 30 anos, muita coisa mudou na sociedade portuguesa e no mundo. Foram inegáveis os avanços conseguidos a nível da escolarização das crianças e jovens e, até certo ponto, do nível de literacia e de qualificação da população adulta. Contudo, a situação presente é, ainda, manifestamente, insatisfatória, por múltiplas razões entre as quais cabe destacar uma global falta de rumo para enfrentar o futuro.
Não têm faltado políticas públicas avulsas, caracterizadas, a meu ver, por excessivo experimentalismo e introduzidas sem adequada participação dos actores a quem cabe realizá-las, gerando descontentamento e justa frustração entre professores e educadores e dando origem a entropias várias no actual sistema educativo e na sua gestão.
Também a sociedade como um todo ainda não se deixou mobilizar pela educação como um tesouro a descobrir e o tema parece andar arredado das preocupações dos meios de comunicação social e quando surge por alguma razão específica é facilmente capturado pelos interesses partidários do momento e/ou pelos pelas expectativas de negócio por parte de alguns grupos privados. Veja-se, por exemplo, o que recentemente tem sucedido com duas temáticas específicas: a municipalização do ensino básico e secundário ou o anunciado termo dos cursos vocacionais. Sendo matérias do maior alcance, sobre elas foram tomadas decisões governativas desfocadas dos respectivos contextos e sem que tenha havido um indispensável debate prévio suficientemente alargado sobre o desenho de uma política global de educação e os seus objectivos. O observador atento tem a percepção de que, uma vez mais, corremos o risco de ver avançar novas medidas de pendor experimentalista, sem consensualização a nível político e sem a garantia da devida adesão por parte dos diferentes actores do sistema educativo.

4. Conclusão: Um Pacto político sobre a educação para o longo prazo
Concluindo, creio ter deixado clara a minha convicção de que é urgente rever e actualizar o nosso sistema educativo e adequá-lo aos desafios do século XXI.
Para isso, há que reconhecer e ter em atenção a situação actual e as suas múltiplas disfuncionalidades que importa corrigir, no curto prazo. Mas importa ir mais além.
É urgente trabalhar na construção de uma documentada, clarividente e participada visão prospectiva que integre os novos desafios e os novos recursos potenciais do século XXI, que mobilize investigadores, docentes, gestores, encarregados de educação, bem como a sociedade em geral e os diferentes partidos políticos que a representam na consensualização de um Pacto político sobre a educação, válido para um horizonte de, pelo menos, uma década.

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